
O ano é 2019. O dia, 26 de outubro. A vítima: Paola Rodrigues José. Vasco e Fluminense disputavam vaga na final do Campeonato Carioca Feminino, categoria adulta, quando mais um ato de injúria racial entrou para a estatística do futebol mundial. A torcedora racista, ironicamente vascaína, visto a conhecida história de luta por igualdade do Vasco da Gama, não foi identificada e, de acordo com o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), em casos assim puna-se o clube. A Quinta Comissão Disciplinar, nesta segunda-feira (11), com toda a indignação pertinente ao caso, multou o Vasco em R$ 20 mil e aplicou também a perda de três pontos.
Relato sumular
“Aos 19 minutos do primeiro tempo, minha assistente número dois, senhora Paola Rodrigues José, me chamou para afirmar que foi chamada de ‘macaca’ por uma integrante da torcida do Vasco da Gama. Além disso, outras ofensas, porém não podem ser identificadas. Ato contínuo com a paralisação para parada técnica, o delegado da partida agiu, juntamente com a segurança do Vasco, retirando todos os torcedores da arquibancada atrás da assistente. Desde as informações passadas aos responsáveis do Vasco, o clube buscou identificar a torcedora, fez o possível para ajudar e deu todos os amparos necessários”, escreveu o árbitro Alexandre Cardoso Rodrigues Junior apontando também o gandula Edmilson Alves de Souza como testemunha.
Denúncia
Com a não identificação da agressora, o Vasco foi denunciado nos termos do artigo 243-G §2º do CBJD, onde fala em “praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. §2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de 720 dias. § 3º Quando a infração for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do artigo 170”.
Depoimentos
Paola, o árbitro e o gandula foram chamados como testemunhas da Procuradoria, tendo o último não comparecido. Visível e obviamente ainda muito abalada com o ocorrido, Paola narrou e relembrou a agressão que sofreu enquanto trabalhava.
– A torcida do Vasco estava atrás, e houve um lance, do outro lado do campo. O árbitro estava na jogada e eles queriam que eu o chamasse e tomasse uma decisão que não é minha. Então começaram “cega, maluca”, até que eu escutei a voz de uma mulher, que parecia ter uma idade avançada, pela voz, “ô macaca, levanta isso daí. Não vai levantar isso não, sua macaca?”. O jogo estava paralisado, eu chamei o árbitro, comuniquei a ele, ele disse ao quarto árbitro que chamou o delegado da partida para torcida se retirar. Primeiro a comissão do Vasco também tentou identificar a agressora, mas nenhum torcedor quis acusar. Foi todo mundo conivente. Então tiraram a torcida e colocaram atrás do gol até o final da partida – disse a árbitra assistente revoltada e sem conseguir conter as lágrimas.
Ao fim das perguntas Paola encerrou com um desabafo.
– Não foi a primeira e não vai ser a última. Quantas vezes eu vou ter que vir aqui para falar que fui chamada de macaca? Não existe isso. Não existe.
O árbitro Alexandre Cardoso também foi ouvido, ratificou o que escreveu na súmula e acrescentou que cogitou suspender a partida em razão do estado em que se encontrava Paola por causa das agressões recebidas, mas a vítima optou por continuar trabalhando.
Defesa e votos
Após serem ouvidos Paola e o árbitro, o procurador da sessão, José Pierre Mattos, fez uso da palavra e pediu que o clube fosse punido.
– A denúncia será mantida. A ausência da queixa na esfera criminal não importa arquivamento dessa ação devido a autonomia das esferas administrativa e criminal, por isso esse processo deve ter seguimento. Devemos observar que a nossa Constituição, desde 88, vem traçando um perfil de sociedade mais justa, igual e com a erradicação das diferenças, principalmente as raciais. A nossa Constituição dá tanto valor à questão da diminuição da desigualdade racial que existem leis específicas para isso. Além disso, estamos diante de um caso de alta gravidade. Nós não podemos admitir que atos racistas, sejam advindos da torcida ou de jogadores e comissão técnica. Nós sabemos que o Vasco tem um histórico, mas o que o Vasco está fazendo da história dele nesse momento? Como evolução de sociedade, todo o sistema desportivo brasileiro, temos que reconhecer que falhamos. Usando as palavras da vítima, quantas vezes ela terá que voltar aqui para dizer a mesma coisa? Isso dói no coração de quem é xingado. Temos que nos pôr no lugar dela. Eu mantenho a denúncia e peço punição séria ao clube – disse José Pierre.
O advogado Vasco, Paulo Rubens Máximo, afirmou ser uma das defesas mais difíceis que já fez, se desculpou em nome da Instituição, mas disse que faria uma sustentação técnica.
– Antes de mais nada eu gostaria, em nome do Vasco, hipotecar a total solidariedade pelos lamentáveis fatos narrados pela senhora Paola. O Vasco não coaduna com qualquer tipo de discriminação. Isso não é o perfil do Vasco da Gama, essa não é a história do Vasco da Gama. O Vasco foi o primeiro clube que admitiu negros e operários, a história do Vasco não pode ser manchada pela atitude absolutamente covarde de uma pessoa que não foi identificada. Preciso fazer uma defesa técnica. O Vasco está incurso no artigo 243-G. O Vasco da Gama, como eu falei em meu discurso, não corroborou com os fatos ocorridos. Diante da informação da assistente, o Vasco buscou identificar, mas essas pessoas infelizmente, Paola, se amparam na covardia. É um ato covarde, um ato vil. Se o Vasco tivesse identificado essa pessoa ele com certeza teria a levado para uma autoridade policial. A pessoa se acovarda diante da gravidade do que se falou, daí punir o clube é inaceitável – defendeu o advogado.
O relator Luiz Felipe Ferreira lamentou os fatos, afirmou se tratar do caso mais difícil de todo o tempo em que milita no TJD do Futebol e votou a pena do Vasco.
– Antes de proferir o voto quero dizer que nós, especialmente, estamos aqui há quase uma década e nunca nos deparamos com ato tão ultrajante aqui. Essa Comissão em específico não tolera atos discriminatórios, sobretudo o racismo. O Vasco tem uma história notória. Foi o primeiro a peitar os cartolas da época justamente na luta contra o racismo. É um contrassenso julgar o Vasco sobre esse fato quase 100 anos depois. A FIFA anualmente lança campanhas de combate ao racismo. Não há espaço para o racismo. O artigo em que foi denunciado o Vasco prevê a aplicação de multa ao clube cuja torcida praticar ato discriminatório. O legislador foi bem feliz aí para não deixar o clube impune. No futebol precisa ser assim. O ato em si é gravíssimo e, com todas as ressalvas da brilhante sustentação da defesa, não há como afastar a responsabilidade do clube em atos tão grotescos. Analisando decisões anteriores, ainda que de primeira instância, essa Comissão tem um caráter de ser extremamente severa, mas justa. Eu quero votar com a minha consciência tranquila. O parágrafo terceiro, desse mesmo artigo, faz referência ao artigo 170 do CBJD (, onde há ato de extrema gravidade. Então aplico multa de R$ 20 mil mais a perda de pontos que é prevista no 170, pelo parágrafo terceiro desse mesmo artigo – votou Luiz Felipe, que foi acompanhado pelos demais auditores.
Thiago Gomes Morani – Primeiramente, senhora Paola, desculpa. Confesso que nenhum caso que julguei até aqui me emocionou como hoje. Sentimento de raiva. Traz uma reflexão de como o racismo é uma questão que ainda está longe de ser superada neste país. Precisamos de pessoas como você, Paola, que não se conforma com esse tipo de caso. Mulher que precisa lutar contra dois preconceitos: o machismo e o racismo.
Claudio Luiz Barbosa – Esse é o caso mais complicado para julgar neste Tribunal e o que me deixa chateado é que quando a gente coloca jogador importante este Tribunal fica lotado. Enquanto não for dada uma punição grave, que mexa com o bolso os clubes, vão continuar deixando os jogadores e torcedores fazerem o que querem. Não tem um diretor do Vasco para pedir desculpas pessoalmente. É muito fácil fazer campanha depois. Tem que haver uma campanha prévia, para que isso não aconteça. Isso não é um caso que se resolva depois do ocorrido. Diante da gravidade do fato, gravidade essa que a gente conseguiu aferir com a presença da assistente, que a gente viu bem claramente o sofrimento que ela passou, que infelizmente em recurso não vão ter essa possibilidade. Não vão ver o que a gente viu aqui. É uma pena. Deveria trazê-la de novo, para que ela seja ouvida de novo. Eu sei que vai ser um sofrimento para a senhora, mas deveria mostrar lá em cima, em um órgão judicante superior, como é sofrido passar pelo que ela passou. Por que lá vai ser a letra fria do papel. Eles vão ler e vão julgar de acordo com o que estão lendo, não vão saber o que a senhora passou, sofreu e demonstrou aqui para a gente.
Elise Duque/Assessoria TJD-RJ
(Reprodução autorizada mediante citação do TJD-RJ e crédito nas fotos)