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Flamengo é multado em R$ 50 mil por descumprimento de regulamento

Homofobia é descartada por Comissão e pena pecuniária é relativa ao artigo 191. Clube é absolvido do enquadramento ao 243-G

20/02/2020

Flamengo é multado em R$ 50 mil por descumprimento de regulamento

O Flamengo foi multado em R$ 50 mil pela Quarta Comissão Disciplinar. Em julgamento excepcionalmente nesta quinta-feira (20), os auditores consideraram que os gritos de “time de viado”, proferidos pela torcida rubro-negra no Fla-Flu da semifinal da Taça Guanabara, feriram o regulamento da competição, mas não um ato homofóbico, sendo afastado o artigo 243-G do CBJD.

Entenda o caso

No dia 12 de fevereiro, quando as equipes disputavam uma vaga na final do primeiro turno do Campeonato Carioca, a torcida do Flamengo entoou das arquibancadas o grito de “time de viado”. O fato não foi narrado na súmula, mas amplamente divulgado nas redes sociais e pela imprensa, o que fez criar uma cobrança por um posicionamento imediato do TJD-RJ. Mas é importante ressaltar que a Procuradoria de Justiça Desportiva é a signatária da peça acusatória, sendo ela absolutamente independente, na forma da lei, cabendo ao procurador avaliar a conveniência da instauração do procedimento acusatório.

O procurador Luís César Vieira protocolou a denúncia na sexta-feira, 14 de janeiro, incluindo o Flamengo nos artigos 191, por três vezes, e 243-G do CBJD, que falam em “deixar de cumprir ou dificultar o cumprimento: de regulamento, geral ou especial, de competição” e “praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”, respectivamente.

Para a acusação, a conduta da torcida rubro-negra vai de encontro com as previsões legais do Código e desrespeita frontalmente os atletas adversários, parentes, o Fluminense como instituição e estimula o ódio e o preconceito, o que agrava a infração. 

“Comprovadamente houve a infração prevista no artigo 191 do CBJD, por três vezes, uma vez que houve descumprimento do Regulamento Geral das Competições, do Código Disciplinar da FIFA e do Estatuto do Torcedor.”

Veja o que dizem os regulamentos apontados pela Procuradoria:

RGC – Artigo 14 § 7º – Os clubes, sejam mandantes ou visitantes, são responsáveis por qualquer conduta imprópria do seu respectivo grupo de torcedores nos termos do art. 67 do Código Disciplinar da FIFA, considerando-se conduta imprópria tumulto, desordem, invasão de campo, violência contra pessoas ou objetos, uso de laser ou de artefatos incendiários, lançamento de objetos, exibição de slogans ofensivos ou com conteúdo político, ou sob qualquer forma, a utilização de palavras, gestos ou músicas ofensivas. 

Código Disciplinar da FIFA – Artigo 13.1 – Qualquer pessoa que viole a dignidade ou integridade de um país, uma pessoa ou um grupo de pessoas usando palavras ou ações depreciativo, discriminatório ou vexatório (por qualquer meio) por razões raça, cor da pele, origem étnica, nacional ou social, sexo, deficiência, orientação sexual, idioma, religião, posicionamento político, poder compra, local de nascimento ou por qualquer outro status ou motivo sancionada com uma suspensão que dure pelo menos dez jogos ou um período determinado ou com qualquer outra medida disciplinar apropriada.

Estatuto do Torcedor – Artigo 13-A – São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei: V – não entoar cânticos discriminatórios, racistas ou xenófobos; VIII – não incitar e não praticar atos de violência no estádio, qualquer que seja a sua natureza.

Um dia antes do julgamento, o Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBTI+ entrou com pedido de admissibilidade como terceiro interessado, o que foi negado pelo presidente da Comissão Disciplinar. Durante a sessão o advogado da ONG, Carlos Nicodemos, sustentou o mérito na esperança de uma reconsideração, agora pelo colegiado.

– É preciso ressaltar que o pedido do Grupo é, acima de tudo, a pauta no que diz respeito ao acesso à Justiça, principalmente das minorias que reclamam a dificuldade do diálogo com os tribunais desportivos. É preciso ressaltar os princípios que regem o direito desportivo. O princípio da democratização diz que não pode haver nenhum tipo de discriminação de raça, sexo, crença. Não bastasse, é preciso estar atento e forte em relação àquilo que se reclama como apreciação desse tema. Uma torcida proferiu cantos homofóbicos contra outro. O interesse e a legitimidade do Grupo está dado efetivamente como defensores da comunidade LGBT. O que pretendo com o Grupo como um terceiro interessado é trazer a essa Côrte informações a respeito do que significa efetivamente a dignidade das pessoas que são afetadas por ações homofóbicas. Se não for como terceiro, que seja então como amicus curiae – pediu Nicodemos, que teve a solicitação rejeitada por maioria de votos, ficando vencido o auditor Lucas Noronha, que justificou o voto.

– Entendo que o Grupo Arco-Íris não tem relação com o desporto pois não é uma pessoa vinculada ao desporto. Porém eu entendo que o artigo 55, quando ele diz “interesse e vinculação direta com a questão discutida no processo”, abre uma brecha para a gente aceitar o Grupo Arco-Íris. Talvez eu fuja um pouco da questão desportiva e entre na questão social, mas para mim o social não pode nunca ser separada do desporto. A gente sabe que os grupos em situação de vulnerabilidade clamam por voz e eu não me sinto confortável em não dar voz nesse momento, no meio do futebol que é um meio extremamente preconceituoso.

DEFESA

O Fluminense, que tinha base legal para ingressar como terceiro interessado, não o fez. O advogado do Flamengo, Michel Assef Filho, juntou aos autos uma nota do clube repudiando a atitude de profissionais da Fla TV. No mesmo jogo, além dos gritos da torcida, narrador e comentarista do canal oficial do Rubro-Negro também fizeram piadas de cunho homofóbico. Quando jogadores tricolores cercaram o árbitro para reclamações, a equipe de transmissão do time da Gávea usou termos como “nossa, que linda”, “arrasou, querida” e “show das poderosas” de forma pejorativa. Porém jornalistas em transmissões privadas não são jurisdicionados da Justiça Desportiva e, assim, não podem ser punidos pessoalmente. Contudo isso não afasta possível ação na Justiça Comum.

Michel Assef foi sucinto na sustentação. Reforçou o repúdio do clube, não afastou a gravidade dos fatos e fez uma defesa técnica.

– O Flamengo não compactua com isso. É um caso que de fato já está dentro do nosso futebol há muito tempo e acho sim que isso precisa parar, precisa de um basta e o Flamengo concorda com isso e já deixou claro que não vai tolerar novamente esses fatos. A gente vai tomar todas as providências para que isso não se repita. Sobre as infrações, acontece que o 243-G é específico e, talvez por um erro, ele fala em sexo e não orientação sexual. Sexo não é orientação sexual. Há uma lacuna, acho que deveria estar orientação sexual, mas não está. Então a defesa pede que seja desconsiderado o artigo 243-G. O Estatuto do Torcedor, no artigo 13-A V, fala em “não entoar cânticos discriminatórios, racistas ou xenófobos” e aí ele não especifica de qual gênero esse preconceito. E aí sim falamos do artigo 191, o Flamengo responsável pelas atitudes da sua torcida, e aí sim há a infração disciplinar. Não seria o 243-G e sim o 191. O Flamengo, instituição, não praticou qualquer infração disciplinar, então a defesa ousa pedir a absolvição ou, se assim os senhores não entenderem, que seja a pena mínima convertida em advertência – disse Assef.

DECISÃO

O relator Fernando de Araújo Menezes começou o voto afastando o teor homofóbico do que foi dito pelos torcedores.

– A denúncia tenta abordar dois assuntos. Um em relação à Fla TV e outro em relação aos cânticos da torcida. Em relação à Fla TV entendo que não caberia ao nosso Tribunal a análise da conduta praticada por aqueles membros, já que extrapola nossa competência, já que não estaria vinculado à prática desportiva. A parte da torcida cabe uma reflexão se o cântico é homofóbico ou não. A definição de homofobia diz “uma aversão irreprimível, repugnância, medo, ódio, preconceito que algumas pessoas nutrem contra os homossexuais, lésbicas, bissexuais e transexuais. As palavras que foram proferidas pela torcida, num contexto geral, e não pessoal, configura a homofobia? Entendo eu que não. Então comungo do entendimento da defesa em relação ao artigo 243-G, já que o artigo não fala de orientação sexual e sim sexo. Vou afastar o artigo 243-G, absolvendo.

Menezes continuou com a análise do enquadramento no artigo 191, onde a denúncia fala que o Flamengo descumpriu os regulamentos.

– Em relação às condutas, a não prevenção, que eu acho que tem total enquadramento ao artigo 191, considerando infração ao regulamento, já que o Flamengo, como todos os clubes, está ciente das condições estabelecidas no início do campeonato. A denúncia fala em três infrações, uma no Estatuto do Torcedor, uma no regulamento da FIFA e uma no regulamento das competições. Entendo que a conduta é única, muito embora aborde a matéria em diversos estatutos, mas a conduta praticada foi apenas uma. Então, com base nessas informações, entendo que a denúncia foi julgada procedente em relação ao artigo 191 e vou aplicar a multa de R$ 50 mil, mas considerando a primariedade em relação a essa conduta, vou aplicar a conversão em advertência – encerrou o relator.

A primeira divergência veio logo no voto seguinte, de Mário Caliano, que apenas não converteu a multa do 191 em advertência.

– Acho que essa matéria merece uma reflexão muito mais profunda. Todos os clubes foram oficiados, isso já é de longa data que a FIFA vem aplicando. Não vou isentar o Flamengo por um tweet após o fato, mas tenho que fazer uma pequena distinção. É bem clara a conduta tipificada no 243-G. Nos resta o regramento o qual eu acho que foi sim ferido no 191, não três vezes como pede a denúncia, mas sim em ato contínuo. Vou comungar com o relator em relação a punição do Flamengo neste item, aplicando R$ 50 mil. Divirjo em relação à advertência – sustentou Caliano, que foi acompanhado integralmente pelo presidente Marcello Zorzenon.

O único auditor que, assim como a denúncia, reconheceu o teor homofóbico nos gritos da torcida foi Lucas Noronha, que durante o voto levantou a questão social das ofensas. Lucas começou analisando o descumprimento do regulamento.

– Com relação ao artigo 191 eu acompanho a divergência. Eu entendo que o clube não tomou nenhuma medida capaz de prevenir a prática homofóbica. O tweet realmente foi em relação à Fla TV, que teve uma postura lamentável, mas eu entendo que não cabe a gente aqui julgar uma tevê e sim o acontecimento na torcida. Acompanho a divergência. Não para aplicar o parágrafo segundo, porque eu não considero uma infração de pequena gravidade. Pelo contrário. Considero ela extremamente danosa.

Para Lucas, os gritos vindos das arquibancadas são homofóbicos e configuram o que traz o artigo 243-G.

– Com relação ao artigo 243-G, não me traz nenhuma dúvida que um canto homofóbico se enquadra neste artigo. Não tenho dúvida nenhuma do que aconteceu no Fla-Flu foi um canto homofóbico. Quando uma torcida se refere a outra ou ao time adversário como “time de viado”, embora seja contraditório pois eu não considero homoafetividade uma ofensa, mas o animus da torcida é a ofensa. Quando ele usa o termo “viado” é de forma pejorativa e não para enaltecer a orientação sexual do próximo, que merece respeito. O que acontece quando uma torcida grita “time de viado”? Ela ofende. Ofende um grupo de pessoas que tem orientação sexual distinta da maioria de nós e de muitos torcedores. Ou não. Porque o preconceito é latente, principalmente no futebol. Conheço jornalistas homossexuais, advogados, médicos, mas não conheço um jogador de futebol e aí a gente entra na gravidade que é a homofobia na modalidade. Será que não existe jogador homossexual? Deve existir, só que ele não se assume porque vai ser limado do futebol e proibido de exercer a profissão dele – afirmou o auditor.

Lucas ainda cobrou uma postura pedagógica também do Tribunal para que seja mais um instrumento no combate a todo tipo de preconceito.

– A sociedade evoluiu e o futebol precisa evoluir com ela. Não há dúvida que o futebol é um meio muito mais discriminatório que a sociedade como um todo. Eu não tenho dúvida aqui que o caráter pedagógico do Tribunal é um dos instrumentos que trará o respeito necessário aos estádios. A gente não pode relativizar o que aconteceu no clássico. Eu vi diversas condenações sobre racismo no futebol. Condenações corretas e necessárias. Não condenar o Flamengo aqui, pelo canto homofóbico, seria um preconceito latente contra qualquer homossexual. Qualquer tipo de preconceito merece a nossa urgente rejeição. Não cabe mais. Eu acho que o Tribunal tem esse caráter, tem esse dever de trazer disciplina ao esporte e por isso eu vou dar ao Flamengo, no 243-G § 2º a pena máxima de R$ 100 mil. Ressalto aqui que não aplico o § 3º, que fala em perda de pontos ou exclusão, pois acredito no caráter disciplinar do Tribunal.- votou Lucas Noronha, que concluiu pedindo uma representação ao Flamengo para que tome medidas capazes de prevenir novas ações discriminatórias.

– Deixo também uma recomendação de que a gente noticie o Flamengo para que tome, mesmo que atrasado, medidas que repudiem integralmente a atitude da torcida e não da Fla TV, que inibam qualquer tipo de conduta homofóbica ou preconceituosa por parte da torcida, que de fato não aconteceu.

O Flamengo foi multado em R$ 50 quanto a imputação ao artigo 191 do CBJD, com voto vencido do relator Fernando de Araújo Menezes, que converteu a multa em advertência, e absolvido no artigo 243-G, com a divergência do auditor Lucas Noronha Rebello, que aplicou R$ 100 mil e o parágrafo segundo. A decisão foi em primeira instância e cabe recurso.

É importante destacar que, de todas as formas de preconceito, a homofobia, o racismo e o machismo matam diariamente.

Elise Duque/Assessoria TJD-RJ
(Reprodução autorizada mediante citação do TJD-RJ e crédito nas fotos)

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